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Palácio

“Seu marido está aprontando.” A voz do outro lado da linha era estranhamente familiar, a notícia dada era direta, nem tempo para um alô.

“O que?” Ela nem teve tempo para pensar no que ouvira.

“Está no Palácio.” Mal acabara de falar e desligou o telefone.

Vera Lúcia colocou o telefone no gancho ainda meio grogue. Era madrugada de sexta feira, estava sozinha em casa, a filha pequena dormia no quarto. O marido tinha saído com os amigos, programa de garotos, chope, futebol e bobagem. Pelo menos era o que pensava.

Mulher caseira, ao menos agora, abocanhou Caio cedo, namorico de adolescentes que foi crescendo, as coisas foram esquentando e, depois de um descuido, engravidaram. No começo quem bancava o namoro era ela, Caio mal tinha dinheiro para pagar o ônibus, muito menos o cinema. O pai de Lúcia, empresário famoso na cidade, bancou os estudos da criança no começo. Mas Caio se formou, entrou no ramo de programação e design e começou a ganhar dinheiro. Muito dinheiro. Comprou um apartamento para o casal, um carro e um closet cheio de sapatos para ela. Retribuiu o dinheiro investido por Vera no começo do namoro. E os dois eram felizes. Ou algo assim. Brigavam por pouca coisa, ele já fugira de casa uma vez, mas sempre se acalmavam juntos. O sonho dele de ter dinheiro se encontrava com o dela, de casar com alguém com dinheiro. E sempre cuidavam da criança também, claro.

O telefonema deixou Vera Lúcia com uma pulga, talvez um carrapato, atrás da orelha. O Palácio era uma conhecida zona da cidade, nada muito real ou surreal como o nome dizia, mas para uma cidade pequena como aquela, era um bom bordel. Resolveu ficar acordada, vendo televisão até seu homem voltar. Depois de dois filmes escutou a chave girando. Pronto, ele chegara. Sua mãe sempre dizia, “Não faça barraco, não de esse gosto”. Levantou e abraçou seu homem. A reação dele foi um tanto arisca, talvez pelo estranhamento das duas situações, Vera acordada até tarde somente para esperá-lo e o abraço amoroso de boas vindas.

O abraço, talvez, amoroso era um simples subterfúgio para o nariz. Ao abraçá-lo, cheirou profundamente seu cangote. Conseguiu definir dois cheiros fortes: charutos e uísque, mas uma nota de fundo extremamente doce e quase floral chamava atenção. Percebeu na hora, que se tratava de perfume vagabundo de vagabunda. “Caio, meu querido, vais aprender.”

“Oi, meu amor, como foi a noite?” Perguntou com aquela doce feição venenosamente feminina.

“Boa, querida. O que você está fazendo acordada?” Tentou escorregar do abraço enquanto tirava os sapatos.

“Te esperando.” Desceu a mão pelas calças dele, segurando seu sexo nas mãos e deslizando cada vez mais sua mão para baixo. Mas não, não era um simples ataque de tesão noturno que infligia Vera naquela madrugada, o que ela queria era saber se o marido usara seu instrumento naquela noite. Mas claro, depois disso ficou com aquele ataque.

Agora ele desistira de escorregar do abraço e agarrou-a, enganchando-a em sua cintura, e caminhou até o quarto, chutando a porta e despejando-a sobre os lençóis.

***

Uma semana depois do telefonema, Caio avisou que sairia novamente com os amigos.

“Onde vocês vão?” O rosto quase realmente ingênuo de dona de casa brilhava na sala em frente à televisão.

“Na casa do Rodrigo. Beber, fumar uns charutos, falar bobagem...” Enquanto falava, Caio tirava as chaves do carro de cima da mesa e caminhava para a sala. Se despediram com um beijo rápido. Vera acompanhou com o rabo dos olhos o fechar da porta, levantou-se, caminhou até o armário de bebidas e arrancou uma garrafa de gin. Essa noite precisará de gin.

Suficientemente amortecida, ela checou o quarto da filha. Dormia como um mimado querubim bizantino. Recolheu as chaves de seu carro e desceu. Suava frio, sentia sua barriga dando voltas. Entrou no carro e engatou a primeira em seu plano.

A noite estava fresca e tranquila, com uma lua cheia digna de um jazz outonal em Paris. O carro de Vera passeava tranquilamente pelas ruas estreitas da cidade, planando pelo asfalto. A primeira parte do plano era checar a casa de Rodrigo. Mesmo que ele fosse ao tal Palácio - como ele iria, Vera tinha certeza - Caio realmente passaria antes na casa do amigo. Com uma lenta passada com seu carro identificou o automóvel de Caio estacionado. Um importado com a sugestiva, e irônica, placa MEU.... era facílimo de reconhecer. Vera ainda tinha tempo.

Vera encostou seu carro algumas quadras depois. Vale mesmo a pena fazer isso? E se não der certo? E... se der certo? As dúvidas se afugentaram quando lembrou que ele passaria a noite com meretrizes... Não, meretrizes não, nome pouco vulgar para quem se metia (ou era metida) com seu marido, eram putas, biscates, pistoleiras. O jazz que tocava naquela lua ia se transformando em um bop cada vez mais rápido. Lúcia olhou-se no retrovisor, viu a profundidade felina de seus olhos pintados, o olhar venenoso de uma mulher irada, engatou a marcha e dirigiu sem pestanejar até o Palácio.

A fachada do bordel não disfarçava seu real intento. Entrar ali achando que se tratava de um bar normal era impossível. A porta dupla, com películas negras que impediam visualizar o interior e um diminuto toldo bordô imitando os hotéis nova-iorquinos, os neons rosas, vermelhos, brancos e azuis que desenhavam e piscavam torres de um palácio árabe, o cartaz com uma advertência contra menores de dezoito anos. Era realmente uma zona. Vera Lúcia estacionou seu enorme carro alguns metros antes de chegar ao inferninho. Caminhou etilicamente confiante até a porta negra e entrou.



***

Vera Lucia nunca entrara em um puteiro antes. Era acostumada com os que apareciam em enlatados norte-americanos. Deparou-se com um bar quase normal. Quase, se não existisse um palco com uma mulher seminua dançando e algumas garçonetes de lingerie e peitos à mostra. Provavelmente a putaria de verdade que esperava não começara devido à hora. Ainda era cedo, o Palácio parecia mais um lugar cult, onde poucos universitários tomariam alguma bebida discutindo alguma banalidade acadêmica. Um armário negro, usando um paletó gasto e fora de moda se colocou à sua frente.

“Olá... ahm... senhora?” A voz de dúvida de o que Vera estava fazendo ali era evidente. Ela, de repente, percebeu que estava muito arrumada para o local e, ainda, desacompanhada. Para uma cidade pequena e rígida moralmente como aquela, uma mulher daquela classe e, principalmente, desacompanhada, em um inferninho era algo demasiado estranho.

“Oi” A firmeza e confiança do cumprimento foi surpreendente até mesmo para Vera. “Quem escolhe as mulheres aqui?” Por trás da convicção da voz, ela escondia a incerteza de o que estava fazendo ali.

O leão de chácara mediu-a com olhos famintos e chamou-a para segui-lo até os fundos. Eles passaram por trás do balcão e entraram em uma porta entre o armário de bebidas e o freezer de cervejas. No fim de um pequeno corredor, o porteiro bateu na porta anunciando, “Tem uma nova aqui, chefa.” E fez um gesto para que Vera entrasse.

Fumando um cigarro atrás de uma escrivaninha, estava a dona da zona, sentada à frente de um computador, contando dinheiro. Tinha uma cara bem vivida de idade indeterminada pelas rugas de sol e cigarro. A mulher convidou Vera para sentar em um velho sofá encardido, se apresentou como Cami, “somente Cami, o resto é para os íntimos.” No começo Cami achou estranho o que uma moça tão requintada, que entre os atributos estavam bons mLs de silicone, uma cintura fina, olhos profundos amendoados, rosto de pêssego impecável e cabelos loiros divinamente tingidos, queria ali no seu pequeno palácio. Lucia tentava escorregar pelas perguntas para conseguir o emprego, não que achasse difícil, mas a velha cafetina devia ter experiência suficiente para saber que ela não era do tipo puta de zona, mas de luxo. Com certas dúvidas na cabeça, mas a chance de ganhar um bom dinheiro por uma noite, Cami aceitou dar o emprego temporário como garçonete, para se adaptar, claro, algo necessário para alguém sem experiência no ramo, para Vera.

A conversa das duas durou o tempo que Vera Lucia esperava. A esta hora seu amado deveria estar chegando. Na sua cabeça, ela ainda não sabia se, a esta altura, ficaria feliz ou triste se Caio não aparecesse.

E lá estava ela, Vera Lucia, nata da sociedade, filha bem criada da burguesia, de lingerie, seios à mostra, pronta para começar a trabalhar. Tomou fôlego algumas vezes, hesitante, se punindo por tomar pouco gin em casa antes de sair. Mas ela se preparou bem, é, tinha pensado em tudo, passo por passo, como o vagabundo pagaria. Com um último suspiro, as mãos trêmulas empurraram a porta e ela entrou no seu pequeno inferno.

***

Enquanto dava a volta no balcão, seus olhos caçavam seu marido. Muita gente surgiu no intervalo de tempo entre sua chegada e a entrevista. Por sorte não achou nenhum conhecido seu ou de seu pai. Ah, se seu pai soubesse dessa. No fundo, uma estranha e sofisticada música lounge tocava. Enquanto pensava sobre que diabos aquele tipo de música tocava em um puteiro, ela avistou seu marido. Estava sentado em uma mesa, com um charuto entre os dentes, um copo de uísque na mão e uma maldita vagabunda dançando à sua frente. O desgraçado devia estar se sentindo o dono da zona. Com o sangue fervendo, subindo até os olhos, ela nem percebeu quem o acompanhava. Por trás, chegou perto do ouvido de seu homem e cochichou em sua orelha.

“Quer alguma coisa para acompanhar a puta?”

O susto de Caio foi impagável. Quando viu sua mulher ali, mostrando os mLs que ele pagou com seu trabalho tão árduo, enraiveceu, mas quando lembrou-se de onde estava e o que estava fazendo, gelou. Sem saber o que fazer, Caio começou a gaguejar, procurando a resposta certa, a qual ele sabia que não existia.

Então Vera começou a declamar o discurso que ensaiara com copos de álcool. “Você não queria uma puta? Aqui está uma pra você”, “E você diz que me ama!”, “Já pensou na nossa filha?”, recheados de filhos da puta, corno, pinto manco e outros nomes que ela nem sabia que conhecia, esbravejou contra Caio, agora com o charuto caído no colo, ainda sem ação. Todo o cinismo que Vera queria mostrar perdeu-se no primeiro fonema. Ela percebeu que o armário de chácara se aproximava, então correu para a saída, empurrando a porta com raiva, deixando toda a zona imóvel, como se o tempo cessasse. Tudo ficou suspenso. As dançarinas, garçonetes, clientes, o armário e, principalmente, Caio pararam no tempo. A estranha música lounge mostrava o único dinamismo no Palácio.

***

Fora da zona, Vera Lucia correu para o seu carro. Isso não ia acabar já, foi muito rápido. Sentada no banco, teve a brilhante ideia. Se aquele filho da puta queria ir para um puteiro, se esbaldar com vagabundas, que ficasse lá. Cantando pneus, ela arrancou com sua enorme caminhonete e estacionou na porta do Palácio, bloqueando a única entrada e saída. Desceu do carro aos berros “Morra aí dentro, filho da puta!”, “Não quero mais te ver, seu merda!”.

Dentro do Palácio, começou a comoção. Ao ver o carro bloqueando a entrada e uma mulher traída gritando lá fora, um velho começou a gritar que ela iria colocar fogo na casa, o leão de chácara tentava puxar a porta, as putas correram para chamar Cami. A dona da zona chegou com o telefone na mão, gritando com a polícia. “Isso é cárcere privado! Sim, é do Palácio. Vem logo antes que ela toque fogo no meu estabelecimento!”

No lado de fora, Vera Lucia começou a se acalmar e percebeu o quão longe tudo tinha chegado. Entrou no carro, engatou a ré e desceu a rua, dobrando a primeira esquina. Logo após o carro dela sumir na escuridão, a polícia chegava para salvar o inferninho.

***

Em casa, a primeira coisa que fez foi pegar sua garrafa companheira e terminá-la. Minutos depois, Caio entrou, com um olho inchado e o nariz sangrando. Vera já estava pensando em começar a jogar as roupas dele fora das gavetas, mas quando viu seu Caio entrando, machucado, sangrando, alguma coisa pesou em seu íntimo. Sem pensar, ela abraçou-o.

“Por que, seu desgraçado?” Começou a soluçar, chorando copiosamente.

“Eu não fiz nada, só estava bebendo com os meus amigos”. A voz dele era, para ela, incrivelmente sincera e chorosa.

“O que fizeram com você? Está todo machucado.”

“Aquele porteiro filho da puta não deixou barato pra mim.” Ela começou, carinhosamente, a beijar seu olho inchado. “Se queres mesmo saber, agora estou banido de lá. Nunca mais posso voltar ou me quebram as pernas.”

Vera Lucia amoleceu. Sua raiva escorreu como as roupas de Caio escorriam agora de seu corpo enquanto se beijavam. Enroscados, tropeçando em suas próprias pernas foram até o quarto, onde, depois de muito tempo, realmente fizeram amor.

Nunca mais falaram sobre o assunto. Por algum motivo aquilo tudo os uniu. Depois de muito tempo juntos, finalmente marcaram o casamento na Igreja.

O Palácio continua de pé, funcionando perfeitamente. Só contrataram mais um armário e Cami faz entrevistas mais sérias com suas novas empregadas. A história virou uma lenda urbana entre nós frequentadores. E eu nunca esqueci aquela mulher raivosa correndo, gritando e xingando com os peitos balançando. Impagável.

— Fim —