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segunda-feira, 4 de abril de 2011

Revisão.

Ano novo é o tempo de promessas e renovação. Prometer que vai perder peso, renovar o IPVA, prometer que vai estudar, renovar o guarda-roupa; e assim por diante. E esse era o clima no apartamento de Márcia no último dia do ano. Ela fazia um resumo dos objetivos atingidos em doze meses, e do que precisaria rever, apoiada no parapeito da janela de alumínio, com o cigarro pendurado entre os dedos balzaquianos e a brasa aquecendo os dedos amarelados; cada tragada, um erro anual a ser refeito. O marido, se é assim que pode ser chamado aquele homem, estava deitado na cama, vendo televisão. Um belo começo de tarde. A louça na pia esperando ser lavada pelo homem e a mulher ruminando sua vida.

Mas não é só Márcia que revê, estuda e remói seus últimos equinócios. No corredor do edifício, saindo do elevador, Rubens procura seu bom fim de ano. Negro, alto e magro, com um sorriso largo e amarelado, mas com dentes alinhados, e o rosto de mestre-sala, que garantia a simpatia de todos. Caminhou lentamente, confiante, uma garça de ébano, até a porta de Márcia.

Na janela, o brilho rubro mentolado chegava ao seu fim momentâneo. O cigarro deslizou pelos dedos de Márcia como os doze meses do ano, planando pelo vento até o chão. Os olhos cansados de mulher acompanhavam a queda quase em câmera-lenta. Quando a campainha tocou.

“Rafael, vai abrir a porta, deve ser o síndico!” Márcia, leonina como só, não conseguia pedir nada, só ordenava. E Rafael sempre obedecia. Na verdade, quem mandava na relação era Márcia. Ela tinha o maior salário, carga horária, pagava o aluguel e fazia o jantar. Rafael era um bem jovem e disposto, que afastava o estresse nas noites quentes.

“Claro, amor.” Se o pedido fosse para lavar a louça, nunca ele teria levantado tão prontamente. Com seu andar avoado, quase dançante abriu a porta, sem olhar no olho-mágico.

***

A imagem da porta aberta, Rubens e Rafael frente a frente, separados pelo umbral era assustadora, ou muito curiosa. Era quase um espelho. Feições, altura e cores iguais. Uma semelhança que ambos pareciam ignorar, mas que fez Márcia sentir em seu íntimo um estranhamento impassível. O passado e o presente, mesclados, separados por uma soleira, reflexos bizarros de um espelho.

“O que você está fazendo aqui?” Os sorrisos largos caíram simultaneamente, como reflexos. Rafael agora tinha a voz firme, comprimida, uma imponência acentuada pelos braços armados de pavão.

“Márcia! Eu vim te buscar!” Rubens gesticulava sem passar do umbral. Márcia estreitava seus olhos, pensando em como nunca notara a semelhança entre os dois. “Eu nunca te esqueci, te amo, quero começar de novo, nesse ano novo com você!” Sem dúvida ele achava a cacofonia poética.

“Escuta aqui, seu bosta: sai daqui antes que eu te encha de porrada!” Rafael avançou um passo, deixando os dois quase encostados pelas testas.

“Rubens,” Márcia interviu, com a voz indiferente “Saia daqui, tudo acabou faz anos. Eu segui a diante, vá embora...”.

Rafael concordou, levantando levemente a cabeça e abrindo as narinas. Que babaca... simplesmente aparece na casa da ex e pede para que ela volte... na frente do marido... depois de cinco anos!

Rubens olhou firmemente para Márcia. Percebendo o olhar dele, Rafael faz o mesmo. Os dois olhares, simultâneos atingem Márcia. Um peso caiu sobre o seu peito, tirando toda sua indiferença e serenidade.

“Vá!” O grito dela saiu inesperado como um soluço. Ordenava como sempre, apontando com o indicador a saída. Rubens sentiu que perdera a batalha e a guerra. Começou a bater em retirada. Ao mesmo tempo, como em um lampejo de consciência Márcia observa sua cama, a bagunça em seu apartamento, a louça suja, lembra da conta bancária e do aluguel. Mesmo com Rubens já de costas à porta, Márcia continua com o dedo em riste. Rafael desmonta seus braços e relaxa suas narinas, agradecido e exausto. Ele começa a fechar a porta, mas Márcia continua inerte com seu dedo.

“Você também.” A frase foi disparada como um veredicto.

Rafael parou com a porta semicerrada.

“Você me ouviu.”

“Mas...” Rafael não acreditava no que ouvia, só podia ser brincadeira.

“Vá. Amanhã pegue suas coisas.”

“Amor...”

“Não adianta. Vá para a casa de sua mãe.”

As lágrimas começaram a descer pelo rosto incrédulo de Rafael. Nada daquilo fazia sentido para ele. Tentou conversar mais algumas vezes, mas não conseguia passar da primeira palavra, e o dedo em riste continuava apontando à saída. Por fim ele fechou a porta, um cachorro expulso do restaurante, com o rabo abaixado, o focinho pendurado, quase riscando o chão.

Márcia acendeu mais um cigarro. Apoiou-se no parapeito, satisfeita com seu julgamento. O ano novo é tempo de prometer e renovar, não repetir.

3 comentários:

léo disse...

Quero só ver como vai ser passar a próxima TPM, acompanhada somente do cigarro e da louça suja. Sem outrém para destilar ordens imperativas...

Cacau disse...

Esse é seu post 69, kaxops....
hmmmm parabéns

Daniel disse...

A principio, nenhuma perda parece um ganho...