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sábado, 25 de setembro de 2010

Folhetim

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- Porra, de novo com esses livros?! Já falei, vai ler alguma coisa decente! – Gritei indignado ao entrar no quarto.

- Não gosto que você fale isso dos meus livros. – Disse ela enquanto fechava o “Bianca” em seu colo e baixava seus óculos finos, me olhando por cima, com uma cara docemente irritada.

Respirei fundo e deixei para lá. Aquele assunto já tinha se esgotado, tantas brigas já causara. Toda a noite ela lia antes de dormir. Essa era a parte boa, ela tinha o hábito de leitura, praticamente um livro por noite. Para mim isso é impressionante, não consigo ler por muito tempo. Não por não gostar, amo ler, mas minha vista cansa e começo a ficar sonolento, por mais emocionante que seja o livro; não consigo evitar. O problema disso tudo, é o estilo de leitura dela. Conhece aqueles livros, geralmente vendidos em bancas de revistas, que possuem o nome de mulheres? “Bianca”, “Sabrina”, “Samantha”, esse tipo de coisa? Então. Esses livros vêm com alguns romances românticos, no melhor estilo filme feminino. Por coincidência, minha mulher também se chamava Bianca. Ela tinha prateleiras cheias desses livros em casa. Quando resolvemos morar juntos e ela veio com aquelas caixas cheias de folhetins, fiquei possesso. Foi a nossa primeira briga com relação ao sei hábito noturno. Lá fui eu arrumar espaço no meu escritório, tão limpo, puro e clássico, para colocá-los. Claro que peguei o pior lugar possível, onde eu não conseguia enxergá-los durante minhas tardes de redação. Essa foi a segunda briga, mas consegui convencê-la a deixá-los naquele canto. Não bastassem esses livros “Nome de mulher”, também existiam os Paulo Coelhos, Danielle Steels, Auto-ajudas e esotéricos. Certo dia ela começou a aparecer com livros sobre dieta. Aquela briga foi feia. Meu Deus. Só a idéia de mais um gênero na minha biblioteca e, o pior, saber que ela iria me obrigar a comer coisas saudáveis, foi o inferno.

Não é que sou insensível. Você tem que entender que meu escritório é meu refúgio. Ali, quando eu morava sozinho, passava tardes afundado em meu trabalho, sem nada para me distrair. Machado de Assis e Rubem Braga inspecionavam minha escrita. Kafka, Allan Poe, Dylan Thomas, Jack Kerouac, Camus, Saramago, Garcia Márquez, Neruda, Benedetti, Chico Buarque, Bukowski, Scott Fitzgerald, Hemingway, Dostoievski, todos, zelavam meu trabalho. Eu fumava, bebia e escrevia, acompanhado de jazz e blues, saxofones e guitarras, em paz, no meu ambiente controlado. De repente, tudo sumira; livros malditos, que não mereciam dividir espaço com os clássicos surgiram. Meses depois, fui obrigado a fumar somente no escritório, porque Bianca tinha rinite. Então, fechado na biblioteca, tentando trabalhar, com meu cigarro pousado na boca, sentia-me observado, vigiado, por Bianca. Aquele livro maldito, com uma mulher sendo beijada enquanto olhava discretamente para mim, me espionava, me reprimia.

Agora vocês devem estar pensando por que eu estava com ela se tudo era tão ruim. Mas não era. A literatura sempre conspirou contra nós, mas no resto éramos ótimos. Ela cozinhava, eu não, torcíamos pro mesmo time de futebol, gostávamos de músicos semelhantes, ela não tinha pai e minha mãe morava em outra cidade, ela era linda e eu sabia que não conseguiria mulher mais bela. Quando saímos sozinhos a primeira vez, adorei que ela gostava de ler “um livro por noite” como dizia. Ah, Bianca, como fui ingênuo...

Um belo dia tudo mudou. Dias depois, após de um comentário maldoso meu, ela propôs:

- Vamos fazer o seguinte, você lê um dos meus livros, eu leio um dos seus.

- Querida, você sabe que isso não vai dar certo.

- Ora, vamos... Leio o que você quiser...

No final concordei. Ela me deu uma Sabrina qualquer, um clássico segundo ela. Para mim, uma grande bobagem. Sabe quando sua namorada lhe carrega para o cinema para assistir um filme romântico chato? Foi a mesma coisa. Eu dei para ela “Crime e Castigo”. Ela não gostou. Achou muita “bobagem filosófica”...

- “Bobagem filosófica”? Você tá falando sério? – Eu estava indignado. A história é genial, como ela poderia chamar de “bobagem filosófica”? É como dizer que “O Poderoso Chefão” é ruim porque tem muito diálogo!

- É... E outra, ele nem se decide se chama a filha do alcoólatra de Sônia ou Sofia... Notasse isso?

Aquele comentário dela ficou ressonando na minha mente. Não conseguia me livrar dele. Ah, eu sabia que não tinha sido uma boa idéia. Tive vontade de chamá-la para ver meu “Barril de Amontillado”. Emparedá-la em minha biblioteca, fazê-la parte de todos aqueles livros, por força. Como Montresor fez com Fortunato no conto de Poe. E todo dia eu tinha de vê-la, lendo, com aquele sorriso de escárnio. Eu tentava pensar no amor, nos bons momentos. Não existia, porém, chance de conviver com aquilo.

Um belo dia, deitei ao seu lado na cama, ascendi um cigarro e dei um tapa em Bianca. O livro, não minha mulher. O folhetim caiu no chão e ela ficou sem reação. Só disse: “Bianca, não dá mais”. No dia seguinte ela foi embora. Minha biblioteca ficou limpa, sem olhares de menosprezo enquanto eu trabalhava. Apenas Allan Poe que parecia me dizer “Devias ter emparedado aquela mulher”.

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