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quinta-feira, 10 de novembro de 2011

O celular perdido (parte II)

parte I

vi

A casa Dela, porque não peguei seu nome – sempre quero acabar a conversa pelo telefone o mais rápido possível e acabo esquecendo de perguntar coisas básicas -, era na metade do caminho do ônibus. Como o ônibus faz mais voltas que um navio navegando contra o vento, de carro o caminho seria infinitamente mais rápido. E eu tenho um carro. Velho. E problemático. Mais de dez anos de estrada, popular, com certo vazamento, faróis temperamentais que gostavam de parar de funcionar – deixando-me somente com o farolete, ou com sorte, o farol alto – e o baixo orçamento para combustíveis fósseis, faziam do vale-transporte a opção mais viável. Mas para uma viagem breve, o Ventania, sim, esse é o nome do meu carro, seria ótimo. Tão ótimo quanto botar um ponto final naquela história. Peguei a chave, montei no Ventania e rumei até a casa Dela.

A casa Dela era no pombal que eu achava que era pelo endereço. Apartamento 202. Apertei o interfone com pressa para voltar para casa e curtir um ócio na internet.

“Oi.” Disse a voz metalizada Dela no interfone. No segundo andar vi uma persiana se mexer, provavelmente Ela espiando minha cara.

“Oi, estou com o celular aqui, mas ele não cabe na caixa de correio.”

Mais uma mexida, provavelmente enquanto espiava o cabeludo-barbudo que falava com a pequena caixa de metal.

“Só um minuto, estou descendo.”

Um minuto depois, Ela saiu do hall de entrada e caminhou no escuro, feroz como ao telefone, em direção à entrada. O piercing na mesma narina, a mesma blusa amarela sem manga e a mesma calça jeans. Com uma mão pousada constantemente no bolso de trás, ela abriu o portão de ferro enquanto dava um “Oi” encabulado.

“Oi.” Respondi. “Achei mesmo que era seu o celular”. Tirei-o do bolso, segurando-o com a palma aberta.

“E eu torci para que fosse você quem o achou. Pensei que poderia ser um freak qualquer.”

“Não diga isso ainda.” Ela pegou o celular das minhas mãos. A mão esquerda ainda pousada no bolso traseiro.

“Diz muito você trazer o celular aqui, muitas pessoas deixariam ele lá ou roubariam.”

Quis dizer que quase o deixei lá, mas não pareceu uma boa ideia.

“Eu sei como é perder o celular. Já caiu do meu bolso também. E me sinto pelado sem ele. Não sei nenhum número de cabeça, e é meu relógio, mp3 e não tenho telefone em casa. Pensei que você poderia ficar na mesma.”

“Obrigada, mesmo.”

“E muito boa a escolha do livro. ‘Ensaio sobre a cegueira’ é ótimo.” Não sei puxar conversa, e isso saiu como um arroto, sem pensar.

“Ah, você notou. Vi o filme e quis ler. Estou adorando. Mas dizem que O Evangelho é melhor.”

“Muita gente diz isso sem ler Saramago porque o Evangelho ganhou o Nobel. Não que eu tenha lido o Evangelho...” Dei um sorrisinho sem graça.

Por fim ela retirou a mão do bolso de trás.

“Olha, muito obrigada.” Ela também deu um sorrisinho sem graça. “Você colocou seu telefone ai na agenda do meu celular?”

“Não, nem li as mensagens.” Falei com um sorriso brincalhão.

“Não quer colocar mesmo?” Agora reconheci aqueles olhos. E lembrei de um “detalhe”.

“Er... qual o seu nome?” Ainda não era esse detalhe que eu tinha lembrado.

“Pode me chamar de Ví.” Disse com os olhos brilhando.

“Olha Ví, eu tenho namorada.” Levantei a mão direita com o anel de prata brilhante.

“Ah...” Desabou um pouquinho da adrenalina que estava. “Sempre assim...” Eu sorri sem jeito. “Desculpa, eu achei que... Sabe...”

“Eu que tenho que pedir desculpa se dei a entender que...”

Ela pegou no meu braço. “Não, deixa pra lá. Esquece. Mas não posso pegar seu telefone mesmo? Você veio até aqui só para trazer meu celular e parece ser um cara legal.”

Só o telefone não faz mal a ninguém, certo? Então o dei.

“Olha, eu tenho que ir.” Disse a ela sem jeito.

“Tudo bem. Muito obrigada.”

Ela estendeu o braço e avançou querendo dar um beijo de despedida entre amigos. Pelas convenções sociais, algo extremamente aceitável. Então reciproquei.

O detalhe é que o beijo na bochecha de despedida tornou-se uma deliciosa mordiscada na orelha e um sussurro de “Adeus”, com os seus lábios deslizando até o canto da minha boca e recuando calmamente.

Como um homem idiota, idiota não de burro, mas por ser idiota e manipulável como qualquer espécime humano do gênero masculino, fiquei sem ação. Ela distanciou-se, fechou o portão atrás de si e caminhou até o vestíbulo do pombal.

Na luz do hall consegui visualizar algo que ainda não tivera condições: sua bunda maravilhosamente redonda e dura, muito bem valorizada naquela calça. E o detalhe fascinante: no bolso de trás, onde a mão ficara pousada por tanto tempo, um canivete. Realmente feroz.

Voltei indignado. Só consegui dormir após, como um conhecido meu diria, desentupir os canos e baixar a pressão.

***

Provavelmente FIM

2 comentários:

Dorival disse...

Muito bom...!!!

Anônimo disse...

Homens sempre pensando com a cabeça de baixo