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terça-feira, 22 de novembro de 2011

Cara, é muito tiro!

Gelson Domingos da SilvaO dia estava agitado na primeira hora da manhã na Unidade de Pronto Atendimento do bairro de Santa Cruz, Rio de Janeiro. Pacientes esperavam desde às 22h do dia anterior na fila quando seis homens fortemente armados do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) invadiram o ambulatório com um homem nos braços. Carregavam o corpo de Gelson Domingos da Silva.

Gelson nasceu em 1965, na favela do Vidigal. Viveu a história clássica dos moradores das favelas cariocas tomadas pelo tráfico: menino mulato, pobre e vaidoso que, ao descer para o asfalto, sofre na pele a desigualdade social da cidade – isca perfeita para os aliciadores do crime. Ele chegou a flertar com as atividades do mundo das drogas, trabalhando como “aviãozinho” e fazendo pequenas em troca de alguns agrados, mas parou por aí.

O problema de Gelson era que ele morria de medo de tiro. Não podia escutar um pipoco no morro sem que suas pernas começassem a tremer e a mão desandasse a suar. A mãe, Geise Domingos da Silva, diz que o medo do garoto é trauma de infância. Ela conta que, certa vez, levou o filho à orla de Copacabana para assistir aos fogos de virada do ano e o moleque se assustou tanto que obrigou a mãe a subir o morro correndo para trocar a fralda da criança, tentando conter o berreiro alucinante.

Gelson obviamente não se lembrava de nada disso. A única certeza era o pavor de tiro. Imagine o tamanho do sofrimento do morador da favela que convivia com os tiroteios quase diários entre a polícia e facções rivais. Ele precisava sair dali urgentemente, se não quisesse enlouquecer.

Foi quando o garoto começou a descer cedo e voltar tarde para o morro, trabalhando como engraxate no centro da cidade. O menino, já com 16 anos, também adorava ver uma televisão. Não que a família tivesse um aparelho em casa, mas, todo final de dia após o exaustivo expediente na Cinelândia, Gelson ficava horas distraído, assistindo às TVs das lojas de eletrodomésticos. Gostava tanto do negócio que, aos 18 anos, arrumou um emprego como office-boy no SBT, emissora que em 1983 operava seu sétimo ano na cidade carioca.

Não conhecia nada de jornalismo, mas o grande interesse despertado pela profissão de cinegrafista o fazia esticar o expediente para acompanhar o fechamento das matérias que iriam ao ar no dia seguinte. Um dos editores do telejornal notou o interesse do garoto e o promoveu, aos 21 anos, à assistente de câmera. Gelson passou então a acompanhar todas as coberturas jornalísticas feitas para o telejornal noturno da emissora.

Cinco anos depois, ainda morador do Vidigal, Gelson finalmente assumiu a câmera e sentiu-se realizado como repórter cinematográfico. Em pouco tempo, o rapaz começou a chamar atenção pelos bons ângulos e a firmeza de empunhadura nos zooms. Trocou o SBT pela Record em 1995 e, dez anos depois, foi para a TV Bandeirantes.

A partir de seu terceiro emprego, Gelson finalmente conseguiu o rendimento suficiente para mudar-se da favela, levando junto mãe e mulher. O grande problema foi que, como Gelson costumava dizer a seus colegas de profissão, “a gente tenta sair da favela, mas a favela não sai da gente.”

Para o seu terror, pouco tempo depois de ter entrado na Band, Gelson foi selecionado como cinegrafista principal para acompanhar as recentes incursões da Polícia nas favelas cariocas. Como se não bastasse, ainda teria que filmar toda a ação grudado nas costas da PM – que geralmente sobe morro acima descarregando os fuzis sem dó. Ele não podia reclamar nem desistir do emprego, afinal precisava do salário para manter o aluguel e as despesas da sua recente mudança.

Na sua primeira cobertura de favela, Gelson tremeu tanto que só foi possível aproveitar o início da gravação e a passagem final, feita pelo repórter ao pé do morro. Algumas subidas mais tarde, Gelson finalmente estava conseguindo controlar seu pavor e elaborou uma estratégia para evitar que fosse baleado por engano. Como era obrigado a usar o uniforme da empresa, que desgraçadamente tinha o mesmo tom dos uniformes policiais, Gelson passou a usar um boné com a aba virada para trás – para não atrapalhar o manuseio da câmera e, principalmente, deixar claro que não fazia parte da força policial.

O cinegrafista ficou reconhecido pela sua cautela em seguir com os policiais morro acima. Foi um dos primeiros repórteres do Rio de Janeiro à exigir o uso obrigatório do colete à prova de balas em operações desse tipo. O colete aprovado pelas Forças Armadas para o uso da imprensa conseguia conter tiros de pequeno calibre como balas de pistolas e alguns rifles – tipo de munição usada pelos traficantes nos anos 90.

Ele ainda não podia dizer que estava acostumado, mas já não tremia nas bases ao escutar as saraivadas. Contava que as piores coberturas eram aquelas em que acompanhava o BOPE. A presença dos militares de uniforme preto nas favelas fazia com que os bandidos disparassem o dobro de tiros morro abaixo – o que, obviamente, apavorava Gelson. A última operação de Gelson foi filmada na manhã do dia 6 de novembro de 2011. Ele ainda era repórter da TV Bandeirantes e havia comprado recentemente um apartamento na zona oeste do Rio de Janeiro.

Naquela manhã, ele acompanhava a invasão do BOPE na favela de Antares. Como de rotina, Gelson ficava agachado atrás de um policial que atirava em alvos ao longe. No momento em que ariscou uma exposição maior do corpo, a fim de registrar o local de onde vinham os disparos, Gelson recebeu um tiro de fuzil no peito. Ele estava vestido com o colete a prova de balas, mas o armamento dos bandidos há muito já havia evoluído. O cinegrafista foi levado ao hospital, mas já chegou morto. No trecho final do vídeo, antes da câmera cair de suas mãos, ouvem-se as últimas palavras de Gelson, que gritava: “Cara, é muito tiro! Eles nos viram! É muito tiro!”

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