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quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O celular perdido

celular

Pegar o ônibus depois das nove da noite, sozinho, sem o fone de ouvido do celular para escutar uma música nunca é bom. Você está cansado de trabalhar e, ou, estudar o dia inteiro e ainda tem que enfrentar o caos do coletivo viário de Florianópolis. Então você senta, fica olhando pela janela o comércio fechado, travestis chegando ao ponto e cachorros passeando, ou dá aquela olhadela quase discreta para as pessoas também entediadas no ônibus.

E era assim que eu estava. Sentado sozinho, olhando pela janela, sonhando alto com o que fazer na quinta-feira. Quando resolvi dar a olhadela semidiscreta para o banco ao lado, vi ela. Sim, ela. Gosto de escrever assim “então vi ela”, não “a vi” ou “vi tal-mulher-fazendo-tal-coisa” porque assim existe um ar clichê, misturado com dar uma pausa para eu pensar e descobrir como vou escrever a próxima frase. Mas vi ela. Pensando bem, “vi ela” é meio cacofônico. Então eu a vi. Isso, melhor.

Então a vi. Sentada sozinha, de lado, com as costas apoiadas nas janelas e as pernas dobradas no assento ao lado. Lia Saramago. Um piercing na narina esquerda. E um rosto quase comum, mas extremamente bem delineado. Deu-me aquela olhadela por cima do livro e pousou o olhar em mim. Como na maioria das vezes que isso acontece, fiquei preso por um momento naquele olhar, até que voltei à minha janela. E lá permaneci.

Quando chegou meu ponto, o último por sinal, coloquei minha bolsa carteiro a tiracolo e olhei para onde ela estava sentada. Como sempre, ela não estava mais lá. Como moro no último ponto sou sempre o último a sair do ônibus. A vantagem de usar o último ponto é que você pode escolher o lugar que vai sentar, a desvantagem é todo o resto. Mas no assento onde estava sentada, jazia abandonado um celular. Veio aquele dilema moral. Pegar ou não pegar? Perder o celular é uma desgraça, ter que achar o dono e devolver é chato e trabalhoso. Mas, seu eu deixá-lo ali, provavelmente seria roubado. Peguei-o, coloquei no bolso e saltei do ônibus.

Fiquei com ele no bolso enquanto abria o portão e subia as escadas do condomínio, só pensando em como resolver aquilo tudo. Para mim, e minha preguiça, um celular esquecido no ônibus era “aquilo tudo”. Pegar uma encomenda na portaria era “aquilo”. Ligar o notebook na tomada, porém, era pior que “aquilo tudo”. Entrei em casa, joguei mochila no sofá, as chaves na mesa e peguei o celular perdido. Levantei seu flipe. Nenhuma foto fofa de casal ou pessoal como papel de parede, apenas o fundo padrão da Sony Ericsson. Pode não parecer, mas isso quer dizer muito sobre você. Fundo padrão é muito melhor que foto pessoal na frente do espelho fazendo biquinho. Abri a agenda e procurei. Se achasse, seria ótimo, porque seria uma pessoa normal. Lá estava: “Casa”. Abri, apertei na tecla verde e torci para que existissem créditos.

Chamou.

Chamou mais duas vezes.

“Alô!” Disse a voz feminina esbaforida.

“Oi, é...” Falar ao telefone não é meu forte. “Quem é?”

“Você me ligou, você diz quem é! E fala logo porque não estou em um bom dia.”

Feroz, personalidade forte. Um canto obscuro do lado direito do meu cérebro falou: leonina, mas o lado brilhante esquerdo falou: isso é bobagem.

Respondi pronta e calmamente. “Eu achei um celular no ônibus agora e esse é o número da agenda que está escrito Casa.”

“Ah, graças a Deus!” Agora estava calma e melodiosa. “Pensei que tinha perdido ele pra sempre.”

“É, escuta, eu não gosto de ficar com o celular de outra pessoa aqui... Se tiver como resolver tudo isso hoje, seria ótimo para mim.”

“Seria ótimo mesmo.”

“Eu posso passar ai? Onde você mora?”

Um silêncio durou quase um segundo. Um cara estranho liga para sua casa, falando que tem seu celular, pede seu endereço e você dá bem feliz e satisfeita. Claro, terá seu celular de volta. Então ele toca a campainha, você atende esperançosa pelo celular e tem um brutamonte como uma pá e corda na porta pronto para te estuprar. Silêncio perfeitamente compreensível. Tive de completar.

“Eu posso deixá-lo na sua caixa de correios, não tem problema.”

“Tá bom, não tem problema, meu endereço é...” Incrivelmente, ela não tremeu a voz. Meu carisma telefônico deve ser mais sedutor que o sotaque de Sean Connery.

***

Continua…

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