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segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Good Times

toca-discosCalça jeans – “farwest” como ele dizia – boca de sino, botina de couro, camisa de estampas coloridas e aberta até o quarto botão, fivela gigantesca de níquel já fosco pelo suor, colete, cabelo cobrindo os ombros, costeletas – verdadeiras suíças – e um cigarro de filtro amarelo pendurado entre os dedos. Sentado à escrivaninha, a fumaça saindo pelas narinas, escrevendo algo em uma velha máquina de escrever. Os pés batendo junto com o groove vindo do velho toca-discos. Tudo embalado em um marmanjo de 24 anos.

A música reverberava pelas paredes do pequeno apartamento universitário, algum disco mono, gravado em quatro canais, assinado por quatro garotos ingleses com sua juventude de vinte e poucos anos há quarenta ano atrás. Algum solo violento de guitarra, uma virada brutal de bateria e um grito lancinante, rouco, louco e intocável de um vocalista maluco, então “tec”. A música desaparece e o disco começa a parar na bandeja, enquanto a agulha se recolhe. Finalmente silêncio. Não pela música ser ruim, ela é ótima, mas agora posso falar sem que o volume tenha que baixar. Disparei assim que ele percebeu que o lado B tinha acabado e preparava-se para se levantar, colocando o cigarro na boca.

“É sério mesmo tudo isso, velho?”

“Sério o que?” Ele andava meio dançante com toda aquela roupa chacoalhando por seu corpo magérrimo e o cigarro dançando entre dedos e boca.

“Tipo... ahm... você sabe que a gente tá entrando em 2012, né?”

“E...?”

“Parece que tu saiu do elenco do That 70’s Show, cara.”

Ele sorriu colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha enquanto escolhia o próximo disco. Acho que ser comparado ao Hyde era um elogio para ele. Não o culpo.

“Todo mundo tem um estilo, cara. Esse é o meu. Adoro tudo isso.”

“Não leva a mal, meu, mas acho que tu tá meio exagerado.” Eu tentava ser o mais gentil possível com ele.

“Que tal Sticky Fingers agora?” Acho que ele estava tão acostumado com esse papo que nem dava mais bola.

“Ótimo.” É um ótimo disco mesmo, fazer o que?

“Cara, as pessoas me acham estranho porque adoro tudo isso. Vivo escutando que sou exagerado. Quer uma cerveja? Já pego uma pra ti também.” Entrou na pequena cozinha de azulejos azuis quebrados, lascados e besuntados por anos de comida universitária. “Aumenta o som pra mim? Valeu.” Voltou com duas cervejas na mão e jogou uma para mim. “Do que eu estava falando? Ah. Então, o pessoal diz que sou exagerado. Isso é besteira.”

“Tu viu Meia-noite em Paris do Woody Allen?” Abri minha cerveja e dei uma longa e gelada golada, que desceu refrescando o caminho inteiro até o estômago.

“Vi e já sei aonde tu quer chegar. Aquele papo de que nostalgia é uma fuga da realidade em busca de um tempo que você acha perfeito, perfeito porque não o viveu.”

“É. E ir a festas com o Scott Fitzgerald e o Hemingway devia ser divertido.”

“Com certeza.” Ele se sentou novamente à mesa e acendeu outro camelinho. “Mas não é por fuga da realidade que eu sou assim.”

Terminei de me esparramar pelo sofá e tirei meus tênis com os pés, arremessando-os em direções opostas.

“Não sei qual lado desse disco é melhor. Mas, cara, acho que tu exagera.”Disco Sticky Fingers da banda inglesa Rolling Stones.

“Por quê?” Ele parou de datilografar – porque o verbo digitar só combina com computadores – e se virou para mim. “O toca-discos, por exemplo. Quando os CDs chegaram e começaram a digitalizar todas essas peças de ouro da música dos anos 60 e 70, a tecnologia de digitalização era horrível. Se você escuta um vinil e um CD dos Beatles e tiver a cara de pau de me falar que o CD é melhor, você não entende nada de música. Parece que passaram um rolo compressor por cima de tudo. Os vocais, o baixo os back vocals, tudo fica horrível! Você mal consegue distinguir as vozes de quem canta... Tudo em troca de ter um som sem o chiado do vinil. Como se o chiado atrapalhasse em alguma coisa. Todo audiófilo que conheço acha que em matéria de som, o analógico é melhor que o digital. Se tu quer escutar bandas antigas, escute o LP que é muito melhor!” Quase sem ar, recuperou-se com um gole e uma tragada.

“Calma que nesse ponto concordo contigo.” Realmente, aquilo para mim era verdade. Pegar um som analógico de senóides perfeitas e transformá-lo em ondas digitais clipadas mata a música. “Mas e a roupa?”

“A camisa tem o tecido bem fino, muito confortável. O colete e a fivela são para dar um charme mesmo.”

“E a calça?”

“Quando foi a última vez que tu foste comprar calças, cara?”

“Nunca compro, elas aparecem no meu armário como mágica... Sem falar que duram até a virilha rasgar.”

“Cara, vai nessas Renners da vida. Olha as calças que tem lá. Me dá nojo.” Suas sobrancelhas se estreitaram, os lábios se contraíram e foram chupados para dentro junto com a fumaça do cigarro. Essa era sua cara de asco e preparo para discursos. “Acho que existe uma grande conspiração que quer fazer todos os homens parecerem afeminados. Fui comprar calças mês passado. Achei calças saruel ‘masculinas’, calças skinny, carrot, e sei lá mais o que. Até onde eu sei, saruel é ridículo até para as mulheres. Parece que estão cagadas! Essas outras são calças que minha namorada usa. Elas tem até cintura baixa, cara! As calças para caras grandes como a gente são todas quadradas igual um saco de batatas. Ridículo, cara. Então fui num brechó e me deliciei lá. Barato e não tira minha masculinidade. E de brinde achei essa calça boca de sino muito foda. E esse colete. E a fivela também.”

“Concordo contigo nesse negócio de calça.” Todas as minhas calças parecem sacos de batata, mesmo.

“Viu? Não é frescura, tudo tem sentido.” Se virou novamente para continuar escrevendo.

“E o cabelo comprido?” Falei rindo.

Ele se virou meio rindo e irritado. “Cala a boca. Tu tens cabelo comprido porque, veado?”

“Pra usar no bloco dos sujos!” Ri mais ainda.

“É, tu fica linda mesmo.”

“Mas sério, por que tu usa a máquina pra escrever e não um computador? Isso tu não tem como negar que é frescura tua.” Acho que aquilo foi um xeque-mate. Ele riu, tirou o cigarro dos lábios e o colocou no cinzeiro.

“Essa coisa linda aqui estava sendo jogada no lixo pelo meu pai. Eu tinha tantas memórias dela de quando eu era pequeno que fiquei com pena... Peguei para mim, comprei uma fita e comecei a brincar. É viciante. Eu entrego meus trabalhos da faculdade batidos assim e os professores ficam com cara de cu. Maravilhoso. E o barulho me trás boas lembranças e atrapalha os outros. O único problema é que falta o backspace e não tem o corretor ortográfico, mas isso te exercita a cabeça, cara. É tipo comer com pauzinhos quando se tem garfo e faca. Você vai encher o saco dos japoneses por causa disso?”

“Você quer comparar máquina de escrever com hashis?” Ele é o craque das comparações esdrúxulas.

“Eu uso o computador sim, tá. Babaca.” Ele deu um olhar ferino com um sorriso na boca. “To escrevendo uma carta pra namorada, velho. Sou romântico mesmo, porra.”

“Viu, ninguém manda cartas hoje em dia. Tem email pra que?”

“Pra mandar putaria. Cartas românticas são mais legais escritas assim.”

“Não deixam de ser ridículas.”

“Senão forem ridículas, não são cartas de amor.”

“Um brinde ao ridículo e à fuga da realidade contemporânea.”

“Tintim!”

Um comentário:

Anônimo disse...

grande verdade tempo bom que não volta nunca mais.