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sábado, 29 de maio de 2010

Jacobina

Aconteceu quando eu voltava do colégio. Estava no primeiro ano, não conhecia muita gente e o caminho até o ponto de ônibus eu fazia sozinho. Sem pressa, pois o almoço em casa sempre tinha que ser esquentado e havia muitos ônibus naquele horário, fazia o trajeto olhando a curiosa e, para mim, nova cidade açoriana - os velhinhos amontoados nos tabuleiros de xadrez ou jogando dominó, as ruas estreitas, o calçadão, o câmbio dólar.

Como eu era diferente naquela época... Mais magro, praticava esportes, não bebia ou fumava e queria fazer faculdade de História na UDESC. Mas ainda gostava de ler, passava tardes de ócio no computador e não entendia as mulheres, como hoje. O cabelo sentia falta de uma tesoura, sem corte, desgrenhado e comprido, a face sem barba, a testa com espinhas; calça jeans preta, camisa do colégio branca e por baixo a camisa australiana – então - preta.

Mas eu descia para o ponto. Sol do meio-dia, o céu azul escuro e fresco, como todo dia de inverno deveria ser. Passava por entre as mesas plásticas dos bares, ritual diário. Naquele dia, entretanto, alguém me chamou atenção. Algo me fazia olhar aquela figura que por algum motivo me olhava também. Algum fascínio pairava entre nós dois. Sem pressa e sozinho, movido pela velha curiosidade, sentei em uma das mesas. Tentava não encará-lo, mas alguma coisa me puxava o olhar novamente. Ele estava sentado na sombra da marquise, torpe, jogado. Lembro vagamente, mas tinha um olhar ébrio, em qualquer um dos possíveis sentidos. Na mesa uma garrafa de cerveja, dois copos, o seu pela metade e o outro vazio, a carteira de couro debaixo do maço de cigarros e isqueiro cromado. Estava sozinho, sua companhia fora embora ou visitava o banheiro. Enquanto me encarava, acendeu um cigarro, que ficou pendurado no canto da boca. Tinha o cabelo curto, mas desajeitado, que teimava em fazer cachos que caiam à fronte, a barba parecia ter um corte, mas fazia tempo que não era aparada, usava uma calça jeans e camisa cinza, ou roxa, sem estampas ou pretensão.

Tudo isso, esse jogo de olhares estranhos durou pouco mais de meio minuto. Até que ele levantou e começou a caminhar em minha direção, copo em uma mão, cigarro noutra. Eu não sabia muito que fazer, mas a curiosidade, minha velha ingrata amiga, me fez ficar parado, sentado, com meu guaraná, esperando o que iria acontecer. Ele chegou perto, falou um cumprimento qualquer, não lembro direito, puxou uma cadeira sentou à minha frente.

“Vejo que encontrasse alguma coisa em minha cara?” disse sério colocando o copo na mesa. Observou o meu silêncio e abriu um sorriso “Sabia que ficarias calado.”

Não me disse seu nome, mas sua voz e olhar me eram familiares. Não me sentia mais nervoso, parecia que o conhecia, mas há tempos não nos víamos. Perguntou-me algumas trivialidades, como quantos anos eu tinha.

“Quinze.”

“Ah, lembro-me de quando tinha tua idade.”

Depois começou a fazer mais perguntas, mas parecia desinteressado nas respostas, como se já as soubesse.

“Não queres saber nada de mim?” perguntou entre uma tragada “Em tua situação, gostaria de saber quem me aborrece.”

“Que situação?”

“Digamos que um desconhecido te molestando. Mas acredite, gostarias de saber quem sou. Me conheces, mas não ainda.” vendo minha cara confusa, deu uma tragada profunda e continuou enquanto soltava a fumaça em meu rosto “Esqueça, só pergunte qualquer coisa.”

Disse-me algumas trivialidades, que estudava na Federal, estava quase se formando, já quis fazer história, bebia e fumava, mesmo que quando na minha idade jurava nunca os faria, era sedentário, acomodado com o físico e também não entendia as mulheres. Olhou o celular e levantou-se, falou alguma coisa de “encontro à russa” com um sorriso irônico.

“Vou indo, moleque. Essa tua camisa ai vai durar” disse-me apontando para minha camisa preta. Virou as costas e se afastou balbuciando com ninguém, soltando fumaça para o céu.

Fiquei sentado por mais um minuto ou dois tentando entender tudo isso. Desisti e voltei para casa. Acabei por esquecer tudo aquilo, do ébrio e seu papo desconexo. Agora, contudo, lembrei desse causo; entendi o que ele quis dizer com “encontro à russa”. O destino é engraçado, até irônico, mas “á russa” foi apenas uma faceta de tudo aquilo, provavelmente fazia sentido para ele na época, enquanto as outras faces ainda desconheço. Quem sabe ele falou para si quando foi embora.

Escrevo na verdade, pelo que me aconteceu dias atrás. Caminhando novamente pelo centro - agora meu velho conhecido - distraído, pensando em contas, obrigações e esperanças, parei em frente a uma vitrina para tomar fôlego. Olhando as promoções por puro esporte, não tenho dinheiro para comprar nada, tudo gasto nos vícios e o pouco que me resta guardo para emergências; nada sobra para extravagâncias.

Na vitrina, a luz cálida da tarde refletia nas vidraças o movimento frenético do meio da tarde. Viam-se perfeitamente as pessoas que passavam por trás, a dona de casa com suas compras, o estudante de cursinho atrasado, os curumins brincando. Mas por um momento, por um relance vi novamente a minha frente o ébrio desconhecido. Encarava-me com o mesmo olhar, enquanto eu olhava perplexo para o reflexo. Só durou alguns segundos, mas vi novamente sua figura. Não disse nada, mas também não precisava, apenas me olhou fixamente. E, do mesmo jeito que apareceu, sumiu, num relance, como um Jacobina.

Um comentário:

Anônimo disse...

Quem nunca se viu assim algum dia?
Jacobina eu até entendi, mas o que seria o "encontro a russa"?

Não parem de atualizar!