Páginas

terça-feira, 7 de junho de 2011

violão-mulher

Naquela época eu morava com minha avó em uma ruazinha tranquila do Estreito. Aquele inverno gelado, que fazia do céu da ilha azul celeste e a tainha correr para o Rio… Ainda estava na faculdade, brincando de professor enquanto tentava escrever alguns contos ou crônicas. Os poucos que considerava de qualidade eram publicados no jornal da faculdade ou até, três vezes apenas, no Jornal de Santa Catarina. Na verdade, escrever sempre foi um sonho antigo, mas eu realmente não levava fé. O incrível, porém, foi descobrir que algumas pessoas realmente começaram a curtir o que eu escrevia, e, em homenagem a uma delas, que apareceu lá em casa no começo dos anos 80, talvez em 82, que vou contar essa história.

Como disse, provavelmente o ano era 82, quando a campainha tocou. Eu estava no quarto, batendo alguma crônica a limpo quando minha vó gritou dizendo que eu tinha visita. Apaguei o cigarro e desci as escadas. Sentada na mesa da cozinha, tomando um café preto e fumando um cigarro slim, coisa que nunca entendi, estava uma mulher que eu conhecia de vista. Se isso aconteceu em 82, eu tinha 23 anos, mas tínhamos a mesma idade. Mirrada, aparentando ser mais jovem, mas ainda assim com traços bonitos, e a pele morena de sol. Ela nunca perdia o tom da pele, mesmo no inverno. Era amiga de um amigo meu. Pelo que lembro chamavam-na de Jô. Se Floripa hoje continua sendo pequena, na época era pior. Minha cara de espanto devia ser evidente.

“Oi Beto, não sei se você lembra de mim... O Tuca disse que moravas aqui”

“Jô não é mesmo?” Puxei o maço de Hollywood da bermuda – porque gosto de usar bermudas no inverno.

Conversamos algumas coisas, das festas em que nos encontramos, de onde morava, até que lançou, com seu jeitinho inseguro que descobri que sempre a acompanhava.

“Me ensinas a escrever?” Parecia que teve que expulsar as palavras da boca.

Eu disse que não era minha praia, que eu não era bom, só brincava, que o Chico escrevia melhor que eu, mas ela só queria saber do meu estilo e inspiração. Não pude negar seu pedido, então fomos ao bar do Seu Frutuoso tomar um vinho azedo.

No bar descobri que ela tocava violão e cantava. E como cantava. Engraçado como uma garganta miúda como a dela tinha aquele vozeirão. No fim das garrafas, combinamos de nos ver no dia seguinte.

E ela apareceu no outro dia com uma máquina de escrever debaixo do braço. Que figura, parecia que a máquina ia desconjuntá-la, de tão pequena. Disse que passou a noite toda escrevendo e precisava de minha ajuda. Era uma crônica sobre uma mulher que desejava perder a virgindade com o padrasto. Ideia louca, muito boa. Fiquei ansioso pela história. Até segurei o baseado para depois da leitura e tirei o vinil do Secos e Molhados. Quando peguei a página, sob seus olhos esperançosos, e vi apenas duas linhas escritas tive vontade de socá-la. Ela se desculpou e disse que estava travada. Acendi o baseado e coloquei o vinil para girar novamente.

“Tens razão, é uma merda, crônicas não são para mim.”

“Não é assim também, você não pode desistir tão fácil.”

“Vou escrever poemas! Isso! Não preciso carregar essa máquina e um poema com dois versos ainda é um poema!”

“Você está chapada...”

“Chapada ou não, estou certa!” E sim, ela estava certa... “Fodam-se os parágrafos! Vou virar poetiza!” Rasgou as duas linhas, levantou-se e foi embora.

No outro dia voltou, com um poema pronto. Queria mostrar-me como era bom.

“Isso é brega de mais, Jô... Muda isto aqui... Tira isso... Mas, esse verso você quer? Não? Beleza... Não manjo muito de poema, mas acho que agora tá melhor.”

“Não, vamos trocar isso. Esse verso tá muito longo... Dá um sinônimo para isso aqui...”

E assim fomos pela tarde até termos um poema. Era bom, admito. Fumamos um pra comemorar. Cantamos Primavera nos dentes. Naquele momento éramos gênios. E ela foi embora.

Fiquei algumas semanas sem vê-la. Um dia recebi uma carta dela. Vinda do Rio de Janeiro. Tinha uma fita cassete e um papel. Ela dizia que tinha transformado nosso poema em música e um produtor carioca tinha se interessado. No cassete o demo do disco que estavam gravando. Muito bom aquele vozeirão e o violão afiado. Nosso poema escorrendo por seis cordas, ressonando pelo quarto. Fiquei feliz. Meu nome num disco de MPB, coautor de um novo fenômeno. E fiquei esperando por mais notícias, batendo mais textos ao lado do rádio, com meu cigarro pendurado na boca.

Mais uma semana sem ouvir dela. Então meu mundo caiu. Fiquei sabendo pelo Tuca. No Rio, Jô desvairou. Muitas drogas, acabou tendo uma overdose. E eu com a fita cassete em casa… Jô tocou pela semana inteira na minha rua. Sem violão, sem voz. A música dessa mulher maluca se perdeu. A fita foi perdida numa mudança. Ninguém mais ouviu aquele rouxinol miúdo.

Escrevo essa história triste porque me lembrei dela esses dias. Minha sobrinha pediu ajuda com um texto da escola. Mas ela só tinha escrito duas linhas. Não entendeu porque chorei.

Nenhum comentário: