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segunda-feira, 27 de junho de 2011

O poetinha – parte III (final)

*Parte III? Perdido? Leia a parte I e a parte II
...
“Desembucha, Chico. To ficando preocupado contigo.”

“Cara, não é nada...”

Estávamos apenas os dois, sentados na mureta do terreno baldio, atrás do Posto Sete. Já estava escuro, compramos um garrafão de vinho colono, do mais barato e suave. Chico jogara seu bloco de poesias fora, estava depressivo e mal saia de casa. Prometi a ele uma bebida e um baseado para levantar o espírito; era o único jeito de tirá-lo de casa. Ele tomava aquele vinagre como refrigerante, cada vez mais bêbado. Assim ficava mais fácil de descobrir o que acontecera.

Eu já sabia da história da menina no ônibus. Nas duas últimas semanas inteiras ele só falava de Érato – era assim que ele a chamava – e como estava inspirado, que tinha escrito o melhor poema de toda a sua vida, e que apenas ela merecia lê-lo. Porém, há quatro dias ele ficou quieto e depressivo. Não falava nada a ninguém.

“Velhinho... esse vinho tá bom de mais.” O brilho nos olhos dele começava a aumentar. Eu começava a enrolar o baseado. Hoje você compra seda em qualquer revistaria, naquela época, ainda mais sem dinheiro, pegávamos o papel fino da parte interna dos maços de cigarro para apertar. Melhor a qualidade do cigarro, melhor a qualidade do papel. Não sei se esse costume sobreviveu aos anos, parei de fumar maconha quando nasceu meu primeiro filho.

“Seu poetero de merda, apaga esse cigarro, tá pronto aqui.”

Contrariado com ter que jogar seu cigarro fora, Chico deu aquela tragada funda, que enche os pulmões com o máximo de fumaça possível, consolando o cérebro por jogar tanta nicotina fora.

Ficamos passando o baseado e falando bobagens, aquelas coisas geniais que falamos chapados, mas que se esquecem na medida em que a fumaça esvazia o cérebro, rimos, bebemos mais daquele vinho horrível, que se tornava um néctar divino. Encontramos algumas figuras carimbadas da vizinhança, que também deram seus pegas, também falaram suas genialidades e também foram embora. Já sozinhos e bêbados, com os neurônios calmos e a fumaça baixando, fui direto ao assunto.

“O que aconteceu, velho? Não és de ficar assim cabisbaixo, ainda mais depois de conhecer aquela garota maravilhosa que me contaste.”

“Cara, deixa isso rolar...” Baixou a cabeça, levantou o garrafão na altura do rosto e chacoalhou-o para ver se restava alguma coisa. “Carajo, necesito más vino...” Chico adorava falar em espanhol quando bêbado. Começou a balançar o garrafão com força.

“Não faz isso!”

Com o impulso do movimento das mãos e do corpo cambaleante, jogou o garrafão para trás. Por sorte, caiu sobre alguma folhagem e não estourou.

“Porra! Nem quebrar essa merda eu consigo fazer direito...” A língua se arrastava por sua boca seca. “Al diablo com estas rubias bellas y tontas!” A fumaça podia ter baixado, mas o vinho corria firme em suas veias. “Insultar en español es muy chistoso...

“Mas és um merdinha mesmo... fala logo.”

“Tá, tá... carajo. Se vai fazer você ficar quieto...”

“Vai me fazer comprar mais vinho.”

“Esse é meu amiguinho querido! É o seguinte... é... ahm... ah tá!” Bêbado chapado maldito “Você lembra que eu encontrei aquela gata, galega, linda de mais no ônibus e não consegui escrever o poema? Então, escrevi o poema mais foda de todos! Ficou genial. Só que eu não sabia o nome dela, onde ela morava, nem nada. Rubia maldita. E ela não merecia um número, eu não poderia colocar nada melhor que o nome dela. Chamei-a de Érato, nada me parecia mais justo. Cara, nunca senti algo tão forte em ver uma mulher. Acho que me apaixonei, na hora. Mas eu não sabia como encontrá-la, então peguei o mesmo ônibus todos os dias...”

“Chico, respira. Toda essa parte eu já sei, você reencontrou ela no ônibus, mas o que aconteceu?”

Entonces, encontrei ela. O poema já tava meio amassado e suado no meu bolso, mas acho que deu mais charme, né? Cara, ela adorou, me chamou de poetinha, perguntei seu nome. Era Érica. E como estava linda... Mal consegui entregar o poema. Aqueles cabelos... aquela boca... meu sangue parecia parar de correr para admirá-la. E fiquei com medo. Peguei seu telefone e saltei no próximo ponto. Antes de ela saltar, eu fiquei com medo e saltei antes...”

“Cagão...”

“Eu sei, eu sei, mas eu estava tremendo de nervoso, suava muito. Se eu mal consegui escrever pra ela, quer dizer que ela é especial... Sabe quantas mulheres eu já consegui pegar desse jeito? Quarenta e seis! É! Quarenta e seis. Eu não tinha porque ficar nervoso. Foi como amor à primeira vista, velho. Só pode... Erato, mi culo... Mas eu fui até a casa dela no outro dia. Ela estava sozinha. Convidei-a para dar uma volta e ela topou. Eu tinha certeza que ela seria minha naquela mesma noite. Jamás...”

Olhando para baixo, Chico tomou ar e continuou triste.

“Ela estava linda. Começamos a conversar sobre tudo. E cara, aí que a casa caiu. Tu nunca ias acreditar nela. Tão linda, mas tão burra. Ela não lia nada, não bebia, não fumava. O pai era militar... É! Um porra de um militar! E ela adorava que os ‘subversivos comunistas do diabo’... Isso, ela falou nessas palavras, fossem presos. Gostava do nosso lindo presidente. De toda essa merda rolando solta. Chico Buarque, para ela, era um cara que fazia músicas românticas bonitas e não devia falar politicagem. Porra! Porra! Eu sei! Nem precisa falar...”

“O que você fez então?”

“Inventei que tinha que ajudar meu pai com o carro e deixei-a no ponto de ônibus. Ela que se arrombe, nunca que eu a levaria para casa depois daquele papo.”

“Tá bom, Chico. Mas você já se decepcionou antes, né? O que tem de mais com isso, você só se empolgou um pouco antes da hora...”

“Beto, não sabes de nada mesmo. Esses teus escritores gringos estão te deixando tão frio quanto eles. Me dá um cigarro. Valeu. Você já passou por isso? Já perdeu os pés por uma garota que nunca visse antes? Que nem conhecias, que nem sabias o nome, que tu não conseguiste falar de tão seca a garganta?”

“Nunca. Acho que você anda lendo muita frescura com essas tuas poesias aí.”

“Por isso você não entende. Nunca vai até ter isso. Eu amei ela no momento que sentei ao lado dela. Eros e Érato conspiraram contra mim!”

“Para com essa frescura mitológica...”

“Viu?! Não entendes! Você me imagina amando alguém como ela? Claro que não! Você me imagina escrevendo a coisa mais linda do mundo, melhor que Vinícius, e tudo ser verdadeiro, e morrer colocando todo meu coração em uma folha de papel para alguém como ela? Amor à primeira vista... Nunca que eu me apaixonaria por ela! Não posso. Isso não existe. Desejo, tesão à primeira vista talvez. Amor nunca! Como dizia o Pessoa? ‘Nunca amamos ninguém. Amamos, tão somente, a ideia que fazemos de alguém.’ Fernando Pessoa estava certíssimo nessa. A beleza dela me cegou! Ela não merecia aquilo, só a mulher perfeita, minha alma gêmea, se ela existir, merece aquele poema. E está nas mãos daquela mulher! Ela que não merece nada! Foi premiada com beleza para compensar a cabeça. Por isso joguei meu bloco fora. Só escreverei agora para quem eu realmente amar. Espremer minha essência em um poema para entregar-lhe a alguém tão, tão... ruim, somente por ser bela? Nunca, nunca mais! Ela me enganou! Fez-me sentir algo parecido com o amor, fez com que eu quisesse ser imortal para continuar ao lado dela. Mas nunca, nem em outra vida poderia me apaixonar por ela. Nunca! El amor solo a aquellos que merecen... Agora, seu puto, cadê minha botella de vino?”

--FIM--

Um comentário:

Alini Farias disse...

o poema certo nas mãos erradas, metafórico