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segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Serrana – parte I

Serra-Catarinense

Existem histórias perdidas no coração de Santa Catarina que, se contadas, pessoas achariam que eram do começo do século XX, ou de outra parte do Brasil. Histórias como estas, são comuns até hoje, nesse pequeno e mal cuidado estado do Sul, mesmo que a que contarei aconteceu há mais de trinta anos.

Uma cidade do coração catarinense, e, consequentemente, no coração serrano é o cenário dessa história que Sergio Leone teria o prazer de contar. Apesar de barriga-verde, o interior do estado sofreu uma influência enorme dos tropeiros gaúchos, que levavam seu charque de primeira até o sudeste do Brasil, atravessando mata fechada, munidos de garruchas, mate, facões e cavalos baios. Tanto que o chimarrão, a bombacha e outros costumes gaúchos são tradicionais na região. Bares onde não se encontra cerveja, apenas cachaça, onde chamar alguém de “filho da puta” é a mesma coisa que ameaçar de morte, e tudo é resolvido no ato, ainda existem na região. Qual o nome da cidade em que tudo se passa esconderei, chamarei apenas de Serrana, para proteger os personagens e acontecimentos. Sim, os personagens e acontecimentos são baseados em pessoas e fatos reais, mas, obviamente, com a devida modificação estética e imaginação deste que vos escreve, preenchendo os espaços vazios causados pelas imprecisões históricas do esquecimento.

Serrana era conhecida como a Cidade dos Pistoleiros. Achar um homem armado no centro da cidade era comum. Se não com um schimitão, pelo menos com uma faca muito afiada. Brigas de bar ocasionavam em morte, ou quase morte, traições amorosas eram resolvidas a bala, assim como as desavenças pessoais. A polícia mantinha-se atenta, mas a distância. E, quando um pistoleiro era preso, este, cumpria sua pena na Capital, pacientemente, e voltava, sereno, após sua longa caminhada de penitência, para a cidade onde retomava o trabalho.

João Pardal era um desses pistoleiros. Segundo a lenda, quando morreu, carregava 43 almas nas costas. A maioria a serviço. Sua primeira morte foi seu pai, mandado pela mãe. Nasceu em um sítio em uma cidade vizinha a Serrana. Trabalhava com os sete irmãos na fazenda e aprendeu a atirar caçando com seu pai. A pontaria do moleque com o rifle era assustadora; queixadas, preás, cutias, lontras e até um leão baio morreram na mira do garoto. Sua mãe, católica devota, uma Santa, como a cercania chamava, viveu sob os maus tratos do pai. Bêbado, briguento e grosso, como a maioria dos homens da região. Ele já matara pelo menos um em um desentendimento com apostas numa briga de galo. E voltava bêbado para casa, onde batia na mulher e nos filhos. Aquela velha história de sempre. Em um julho gelado, com o pasto coberto por gelo fino e a benção de Nossa Senhora, a mãe prometeu ao filho a fazenda e paz de espírito se matasse o pai. Naquela noite, quando o pai chegava a cavalo do bolicho, João o abateu com a Winchester do próprio pai, como se fosse um jacu fujão.

Não que João fosse uma pessoa ruim, um brutamonte. Na verdade, João tinha a voz mansa, gostava de ver o entardecer caboclo da serra tomando um mate e adorava crianças. Sua pele avermelhada do sol e o chapéu de couro inseparável eram como o de diversos colonos da região. Só as cicatrizes no rosto e corpo que eram exageradas. Certa feita, na venda do Seu Müller, João Pardal teve um desentendimento com um peão por causa de uma cicatriz, que descia da ponta de seu olho esquerdo até a o maxilar. O resultado foi uma mão amputada e morte por gangrena. Mais um par de mortes foi por ofensas a sua Santa Mãe.

Toda tarde, João ia a cavalo até a fazenda de Matheus Batista, amigo seu de infância. No caminho pegava laranjas, limões e bergamotas das árvores que encontrava. Já na fazenda, as bergamotas eram dadas ao filho de Matheus, o pequeno Francisco, e o resto servia para gastar uma caixa de munição treinando tiro. O pequeno muito gostava de ver Pardal atirando, conta-se, inclusive, que João Pardal teria ensinado Francisco a atirar, mas são apenas boatos.

Outro pistoleiro famoso de Serrana era Novembrino. Criado órfão, por um padre, pouco se sabe sobre seus pais verdadeiros, apenas histórias rondavam as redondezas. Batizado, crismado, coroinha e quase padre, Novembrino viu as injustiças do mundo quando seu pai, Padre Agostinho, morreu por uma bala de um tenente. Como todas as histórias sobre Novembrino, não se sabe exatamente da verdade, apenas relatos esparsos. Diz-se que a mulher do tenente confessara uma infidelidade ao padre. O tenente, amigo de Agostinho, teria ficado furioso ao descobrir que seu amigo não o avisara da traição. Nem os votos sagrados do sacerdócio salvaram a vida do padre. Outras histórias, essas menos críveis, dizem que o próprio padre teria tido o caso com a mulher do tenente. Novembrino, que também aprendera a atirar caçando, se vingou entregando a alma do tenente a Deus com cinco tiros de calibre .38.

Ao contrário de João Pardal, que atuava apenas nas cercanias de Serrana, Novembrino fez fama por toda serra e oeste catarinense, e os dois eram equiparados em fama e habilidades. Novembrino era mais rude, de pouca conversa, não era a melhor companhia para tomar cachaça ou numa briga de galo, mas não gostava de usar sua faca nos serviços. Tinha orgulho de carregar no coldre um revólver americano de prata, seu maior tesouro, limpo todos os dias e que vira mais mortes por sua alça de mira que três peões conseguiam contar com os dedos. Segundo pessoas da época, sempre depois do serviço, Novembrino pedia perdão na igreja, por seus pecados e pelos pecados da alma que enviara ao criador.

João e Novembrino não eram amigos, mas também não eram inimigos. Entre os dois acontecia certa competição empresarial, afinal trabalhavam no mesmo ramo. O povo da cidade também evitava discussões sobre as habilidades dos dois, afinal, tal coisa poderia ser vista como uma provocação.

A história real começa quando Rubião Petrosky, sargento da polícia, procurou João Pardal para um serviço. Rubião era uma espoleta, o dedo adorava puxar um gatilho, mas era um homem da lei; apenas matava criminosos. Não tinha a perícia de João na mira, e não gostava de pistoleiros, mas era só a quem podia recorrer em situações como aquela. Se seu código de honra não permite que você faça alguma coisa, procure outra pessoa para fazê-lo.

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Continua…

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